domingo, 24 de maio de 2009

Touradas: Factos, Razão e Ética – Parte II (Os ataques Ad Hominem e os apelos à autoridade)

Por Miguel Moutinho, Presidente da ANIMAL ©

A indústria tauromáquica em Portugal (assim como noutros países, diga-se) está, mais do que nunca, numa situação de crise de aceitação social e de apoio político (algo que tem cada vez menos, enfrentando cada vez mais oposição e crítica ou, pelo menos, distanciamento), o que tem também reflexos económicos. É, por isso, uma indústria que, mais do que nunca, se encontra em estado de verdadeiro desespero. E, como indústria que é, tem estado a apresentar inúmeras evidências de quão ameaçada se está a sentir, o que teve o seu pico numa primeira manifestação pró-tauromaquia em frente ao Campo Pequeno (a primeira manifestação do género alguma vez feita, que confessou, de forma explícita, quão social e politicamente pressionada está esta indústria). Esta indústria está também a tentar dar respostas aos seus críticos e a preparar contra-ataques para defender a tauromaquia. Isto tem vindo a acontecer, e sabe-se que será intensificado, mas é algo que está condenado ao insucesso, não só porque é uma indústria que desenvolve uma actividade indefensável – a de torturar animais em nome do entretenimento – mas também porque todas as linhas de resposta ou contra-ataque da indústria tauromáquica são ostensivamente inválidas, inúteis e não respondem nem resolvem o problema que se lhes coloca. Numa série de artigos, da qual o presente faz parte, a ANIMAL analisa, individualmente, e com base em factos, na razão e numa ética universal e objectiva, cada resposta / contra-ataque da indústria tauromáquica às críticas que enfrenta.

Não é uma ideia nova, mas tem sido mais comum, nos últimos tempos, os defensores das touradas tentarem proteger a tauromaquia através de ataques a pessoas e às suas supostas fragilidades (com falácias ad hominem) ou através de elogios e apelos à autoridade de pessoas (argumento da autoridade).

1) No primeiro caso, tem sido comum os defensores das touradas acusarem a ANIMAL e os activistas anti-touradas de oporem às touradas, fazendo campanhas e promovendo manifestações contra estas, porque, segundo os defensores das touradas, estes gostam de protagonismo e querem promover-se através da oposição que fazem às touradas.

Este é um dos contra-ataques típicos. Começa por ostensivamente esquivar-se à questão central – as razões éticas pelas quais a ANIMAL e os activistas anti-touradas se opõem às touradas – para se limitar a lançar apenas um ataque pessoal contra quem se opõe às touradas. Este contra-ataque é falacioso e não responde ao problema em discussão. É a chamada falácia ad hominem. Em vez de se atacar o argumento apresentado pelos indivíduos que se opõem às touradas, ataca-se os próprios indivíduos pessoalmente, deixando completamente esquecida a única parte que interessa na discussão – o(s) argumento(s) ético(s) contra as touradas. Ou seja, em vez de se apresentarem contra-argumentos que invalidariam os argumentos éticos contra as touradas, aquilo que os defensores fazem é atacar os defensores dos animais.

Para percebermos melhor quão falacioso, tolo e ineficaz é este contra-ataque, vejamos o seguinte exemplo. Suponhamos que, como acontece muitas vezes, a organização de defesa dos direitos humanos X (chamemos-lhe Organização X) está a acusar o governo do país Y (chamemos-lhe Governo Y) de permitir ou ordenar a execução de actos de violação de direitos humanos. Suponhamos que, neste caso, o Governo Y responde à Organização X acusando-a e aos seus dirigentes e membros de se quererem promover através da crítica a este Governo, assim tentando obter o protagonismo que, defende o Governo Y, a Organização X e os seus membros procuram. Neste caso, a Organização X está a acusar o Governo Y de violar, por acção ou omissão, os direitos humanos, baseando essa acusação num argumento moral de defesa dos direitos humanos. E o Governo Y, em vez de responder à acusação moral de que é alvo, a propósito dos direitos humanos que é acusado de violar, por acção ou omissão, ataca *pessoalmente* a Organização X e os seus membros, escusando-se totalmente a responder ao que está em causa – a violação dos direitos humanos de que é acusado de permitir ou ordenar.

Este exemplo ajuda-nos a compreender, de forma óbvia, que esta resposta dos defensores das touradas não serve para defender as touradas, levantando uma questão completamente alheia ao debate, sem responder, em momento algum, à questão principal – a dos argumentos éticos contra as touradas.

Acresce que este contra-ataque revela um tremendo cinismo. Dizer que a ANIMAL se opõe às touradas para se promover é o mesmo que dizer que a Amnistia Internacional condena o Governo do Nepal e a ausência de medidas de protecção dos direitos das mulheres por parte deste governo como meio de obter notoriedade, que a UNICEF denuncia a fome e a pobreza extrema e o modo como estas afectam dramaticamente as crianças para obter protagonismo, e assim por diante. Seria o mesmo que dizer que Martin Luther King lutou civicamente – e acabou por ser assassinado em resultado dessa luta – para obter reconhecimento, e que Gandhi, Mandela e outros indivíduos denunciaram graves erros morais e políticos e trabalharam pela justiça só porque queriam ficar na História como grandes líderes morais. E, como é óbvio, esta é uma ideia absolutamente contestável. Felizmente, há muitas pessoas no mundo que querem apenas ajudar quem precisa de ajuda e defender quem precisa de ser defendido, procurando, ora individualmente, ora no contexto da actividade de organizações, trabalhar para eliminar situações diversas de injustiça. E é só como um efeito secundário não pretendido que essas pessoas ou organizações poderão vir a obter notoriedade – mas não porque a procurem ou pretendam.

2) No segundo caso, que é também bastante comum, os defensores das touradas tentam anunciá-las como respeitáveis porque figuras importantes gostam de touradas e querem que elas sejam mantidas. Como noticia o site tauromáquico “Farpas”, os defensores das touradas vão tentar envolver figuras públicas – tais como, segundo os mesmos, Manuel Alegre e Joaquim Letria, entre outros – na defesa das touradas, para ajudarem no contra-ataque que a indústria tauromáquica estará a preparar em resposta à ofensiva cívica que a ANIMAL tem conduzido contra a tauromaquia. Os defensores das touradas previsivelmente defenderão que, uma vez que figuras públicas tais como Manuel Alegre, Jorge Sampaio e Joaquim Letria, entre outras, gostam de touradas e querem que elas continuem a ser permitidas, então as touradas deverão continuar a ser permitidas.

Trata-se de mais uma falácia, conhecida como o “apelo à autoridade”. Não só as figuras públicas que gostam de touradas não estão especialmente qualificadas para travarem uma discussão ética acerca das touradas – não são especialistas em ética, pelo que a sua opinião não é especialmente digna de consideração para a discussão – como também nem sequer tentam esboçar uma resposta moral aos argumentos morais apresentados contra as touradas. Na verdade, aqui, os defensores das touradas esperam que o mero nome destes apreciadores de touradas famosos sirva para convencer a sociedade de que as touradas devem continuar a ser permitidas. E, mais do que isso, os defensores das touradas esperam que o simples facto de Manuel Alegre ou Jorge Sampaio dizerem publicamente que são aficcionados das touradas e que acham que estas devem continuar a ser permitidas seja suficiente para que a opinião do público fique influenciada de modo a acreditar que as touradas devem continuar a ser permitidas por lei.

Ora, obviamente, os factos em discussão não mudam em função de quem se pronuncia acerca deles. Não é porque Manuel Alegre é a favor das touradas e Pedro Abrunhosa contra que as touradas são ou não moralmente permissíveis. Aquilo que deve levar os indivíduos e as sociedades a decidirem se as touradas devem continuar a ser permitidas por lei nos países onde ainda existem nem por um momento deve incluir o facto irrelevante de Ernest Hemingway ter sido um apaixonado por touradas enquanto George Bernard Shaw foi um acérrimo defensor dos direitos dos animais. O que está em discussão é, mais uma vez, se existe alguma boa razão para que um grupo de indivíduos possa continuar a perseguir, molestar e torturar animais apenas para retirarem prazer e/ou lucro dessa actividade. E, até que os defensores das touradas apresentem essa boa razão que falta – e que, até prova em contrário, não existe –, a única conclusão que se pode retirar é que as touradas devem ser proibidas. Sem hesitações.